Piaçava: velha opção, novos caminhos


Reportagem de Gabriel Nogueira, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: Luiz Prado/AE

O trabalho semi-escravo persiste na região de Barcelos, nas margens dos rios Negro e Demene, entre a população dedicada à extração de piaçava, fibra usada na confecção de vassouras e cordas para navios. Nos igarapés do município de Barcelos - que tem 89.572 quilômetros quadrados - há extrativistas "presos" por "dívidas", denuncia a irmã Rosa Galdino da Cunha, da Missão Salesiana.

Eles são impedidos de ir à cidade pelos "patrões", os intermediários do comércio de piaçava. "Este é um sistema econômico de escambo, onde o patrão troca o trabalho pela comida e cachaça. Os extrativistas não controlam a contabilidade, não têm acesso aos preços reais de venda e compra dos alimentos e acabam "endividados", explica Renato Cabral, do Núcleo de Monitoramento Ambiental, CNPM. Os "patrões" não deixam os endividados saírem sem pagar as contas, eles ficam, consomem mais, aumentam a "dívida" e nunca saem do círculo vicioso.

Na cidade, 40 "patrões" comercializam cerca de 4 mil toneladas de piaçava (Leopoldina piassaba) durante os seis meses de produção. Segundo levantamento feito durante a Expedição Demene, cada trabalhador tira uma média de cinco toneladas entre junho e novembro, quando os rios estão na vazante. Quando as águas sobem, os fardos são transportados de canoa até a boca dos igarapés (afluentes dos rios principais), onde um barco maior, dos patrões, recolhe o produto. Na época da retirada, os trabalhadores moram em tapiris, ou palafitas de palha, sem paredes, suspensas sobre as águas dos igarapés.

Pedro Alves Cardoso perdeu sete dos seus 44 anos no interior de um igarapé até conseguir saldo positivo e o patrão permitir sua saída. Ele tinha um sítio em Tabocal, última localidade rio Demene acima, antes da aldeia ianomami Ajuricaba. O irmão o convenceu a ir trabalhar com a piaçava, iludido pela promessa de maiores ganhos. "Não conseguia nem dinheiro para comprar roupa", lembra Pedro. "Muitos se desesperam com a situação e fogem assim que percebem que nunca conseguirão pagar as dívidas", diz a irmã Rosa. Se o caboclo fica doente, não recebe nada. Não existe compromisso social do patrão para com o extrativista. "É pior do que o sistema medieval, onde havia o compromisso do senhor feudal com o vassalo", compara Renato Cabral.

Além de pagar pouco pela fibra para os extrativistas, os patrões revendem a piaçava com lucros de 200 a 300%. As vezes fazem trocas por mercadorias encomendadas pelos piaçabeiros, em bases totalmente irreais. "Uma vez, um que fugiu depois de 17 anos de semi-escravidão contou que o patrão trocou 500 quilos de piaçava por uma garrafa térmica pequena e uma tonelada por um relógio de pulso descartável", conta irmã Rosa. Hoje com 62 anos, ela viaja ao longo dos rios Negro e Demene desde 1958, alertando contra a semi-escravidão e prestando assistência à saúde. Em 1976 teve seu barco queimado, como represália pela sua atuação junto aos piaçabeiros.


Foto: Clayton F. Lino/AE

Apesar do atentado, a persistência da freira surtiu algum efeito. Enquanto a geração de Pedro Alves esperava o tempo passar e enfrentava privações para saldar as dívidas, a geração mais nova está tomando o rumo da cidade e comercializando seu produto pelo melhor preço. A inexistência de cooperativas, no entanto, ainda transfere o lucro para os intermediários ou para as fábricas de vassouras. "Ás fibras sintéticas, como o plástico, estão substituindo a piaçava em quase todas as aplicações. A fibra natural só funciona aqui porque é desmonetarizada, na base da troca. A alternativa seria a organização dos extrativistas e, posteriormente o beneficiamento da fibra, através de fábricas de vassouras", exemplifica o pesquisador da Expedição Demene.