Palmito e abacaxi, a opção industrial


Reportagem de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE


Palmito - Foto: Luiz Prado/AE

Enlatar palmito na cheia e abacaxi na vazante pode se tornar uma opção econômica e até sustentável para os habitantes de Barcelos, nas margens do rio Negro, 430 quilômetros a noroeste de Manaus, no estado do Amazonas. O palmito lá extraído é de jauari - uma palmeira cheia de espinhos dos pés ao cerne - que cresce em abundância nas ilhas e igapós dos rios Negro e Demene. Sua extração é tradicional para consumo das populações ribeirinhas, mas nos últimos anos esse palmito também vem sendo beneficiado na única fábrica da cidade, a Jauari, implantada com incentivos fiscais e de propriedade do Grupo Machline (Sharp).

Já o abacaxi é uma cultura introduzida recentemente na região , pelo próprio Grupo Machline. Foram plantados 8 hectares de variedades diversas, a título de experiência, e a empresa espera aumentar a área para 100 hectares, tão logo regularize a produção no campo e ajuste as máquinas para enlatar grandes quantidades. O produto seria beneficiado pelos mesmos funcionários que trabalham com o palmito, mas na época seca, quando a vazante dos rios não dá acesso aos palmitais.

Além de ser uma alternativa para a ociosidade da fábrica, o abacaxi pode se transformar numa opção econômica para substituir produtos extrativos em baixa, como a sorva ou a piaçaba. A sorva é uma goma extraída de árvores à maneira da seringa, largamente utilizada na fabricação de chicletes, até a indústria encontrar um substituto à base de petróleo e os preços despencarem. A piaçaba, fibra usada na fabricação de vassouras, vai pelo mesmo caminho, com a invasão dos mercados pelas vassouras de plástico.

Alguns homens que extraíam sorva e piaçaba, na região de Barcelos, começam a se voltar para a agricultura e já houve quem consultasse a gerência da fábrica, para saber se a empresa compraria abacaxi de terceiros. Da fruta são feitas geléias e doces em calda. O abacaxi promete resolver os graves problemas de sazonalidade do palmito, determinados pelas técnicas rudimentares de extração ainda utilizadas.

O palmito de Jauari só pode ser cortado quando está com água pelo meio do tronco. Os palmiteiros chegam às árvores de canoa e as derrubam a golpes de terçado. Antes que o tronco afunde e ainda dentro dágua, é cortado o palmito, de cerca de um metro. O palmiteiro puxa só o palmito para dentro da canoa e apara os espinhos, deixando todo o resto da palmeira para o rio levar. Cada palmiteiro corta de 80 a 150 palmitos por dia.

Depois de descascado, cortado, cozido em salmoura e enlatado, o palmito é vendido ao comércio. Os varejistas locais acrescentam uma margem de lucro de 40% e o produto segue para cidades vizinhas e Manaus.

No período de corte, os palmiteiros permanecem nas ilhas por vários dias, dormindo em barcos de apoio e estocando os palmitos nos galhos das árvores semi inundadas. Periodicamente, um barco da empresa vai às ilhas buscar o estoque e vender mantimentos aos homens. A estrutura de preços e a relação de trabalho não é muito diferente do praticado pelos patrões de piaçaba e sorva, que praticamente trocam trabalho por comida. Ninguém nunca ouviu falar em carteira assinada e o preço raramente é discutido: o comprador é quem fixa o valor e quem trabalha na extração pega ou larga.

A fábrica tem capacidade para processar cerca de 3 mil palmitos por dia, mas funciona com capacidade ociosa porque a produtividade dos palmiteiros está muito abaixo disso. Romualdo Mateus, um dos palmiteiros a serviço da Jauari, explica porque é difícil conseguir mais gente para trabalhar na extração. De acordo com ele, a atividade exige prática, muito esforço e ocorrem muitos acidentes. Um palmiteiro sem prática não tira mais de 40 palmitos num dia e sempre termina com algum ferimento. "Eu mesmo tive dois acidentes. Uma vez tinha dois jauaris e um filhote no meio, levantei a mão pra cortar o filhote e minha mão foi direto nos espinhos. Foram dez dias sem poder mexer a mão, sem poder fazer nadinha mesmo", conta Mateus.

As palmeiras de jauari, além de ter espinhos, abrigam insetos e animais peçonhentos. "Tem a formiga doida, que cai na gente e entra pela roupa, deixa a gente doido; tem uma outra formiga grande que pica ardido, também dá aranha e dá jararaca e coral. As cobras ficam enroladas na `capemba' do palmito e quando a gente corta tem que ser rápido pra jogar a cobra n'água". Capemba é o ponto de onde saem as folhas e o cerne do palmito.

Mesmo os palmiteiros experientes não aguentam muitos dias seguidos na mata. E quando eles vão para a cidade, a produção da fábrica pára. Acidentalmente, é essa falta de continuidade na extração que hoje garante o tempo necessário à recuperação natural dos palmitais. Uma palmeira de jauari leva em média 4 anos para chegar ao ponto de corte e cada vez que se tira um palmito, a árvore inteira é sacrificada. Ninguém replanta jauari nas matas das ilhas, nem se pensa em cultivos racionais.

Através de um zoneamento econômico-ecológico, como o executado pela equipe de pesquisadores da Expedição Demene, os estoques naturais de palmito poderiam ser manejados. Aí, a sustentabilidade desse sistema extrativo dependeria de um plano racional e não do acaso ou da falta de mão-de-obra para a indústria.