Lagoa das Onças, calcanhar de Aquiles do Demene


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE

A leste da Lagoa das Onças, num dos meandros do alto Demene, fica uma das áreas mais frágeis de toda a região percorrida pelos pesquisadores da expedição: a estreita faixa de mata inundável que separa a bacia do Demene, no Amazonas, da bacia do rio Branco, em Roraima. Normalmente existem elevações separando as águas de duas bacias. Elevações que podem ter apenas alguns metros, como no Pantanal Matogrossense, ou milhares de quilômetros, como nas regiões de cadeias montanhosas: Andes, Alpes, Himalaia. "O surpreendente, na Lagoa das Onças, foi encontrar água separando duas bacias", comentou Evaristo Miranda, coordenador da expedição.

Em 25 de agosto de 1991, acompanhado do botânico Jean-François Duranton, do biólogo José Roberto Miranda e do educador Wilson Malawasi, ele saiu do barco principal, num bote com motor de popa, para conhecer de perto a Lagoa das Onças. Com base no que viam nas imagens de satélite, eles acreditavam que haveria uma passagem, em zona inundada, entre o rio Demene e o Xeruini, afluente do rio Branco.

Os guias locais não conheciam essa passagem, por isso os pesquisadores foram sozinhos e navegaram por entre as árvores baseados apenas nas imagens de satélite e na bússola. Um pequeno acidente os deixou momentaneamente perdidos. "Seguimos a bússola até onde os galhos não davam passagem e, ao retornar para tentar outra passagem, entramos numa caba", contou Malawasi, que conduzia o bote. Caba é um nome genérico para várias espécies de marimbondos e abelhas, de picada dolorosa, normalmente atraídos pelo barulho do motor de popa.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

Os pesquisadores fizeram uma volta rápida e deitaram para se proteger do enxame, navegando rápido por entre os galhos. "Só duas cabas nos atingiram, conseguimos deixar o enxame para trás, mas, quando paramos não sabíamos mais onde estávamos", continuou o educador. Eles tentaram um contato com o barco, através do rádio, em vão. Acabaram achando o caminho de volta, com um pouco de sorte e muitas voltas na bússola. E ainda puderam confirmar as suspeitas de que as duas bacias se encontram dentro d'água, na altura da Lagoa das Onças.

"Eu arriscaria até um palpite de que as águas desta mata de igapó, entre as duas bacias, chegam a inverter seu sentido, conforme o rio que esteja puxando", disse Evaristo Miranda. O termo puxar é usado na região para explicar o balanço hidrológico: quando um rio começa a secar, ele desbloqueia seus afluentes ou as águas dos campos e das matas de igapó, que passam a drenar para seu leito. Ou seja, o rio está puxando as águas do igarapé, do campo ou do igapó. O período de vazante do rio Branco não coincide com o do Demene. Daí a suspeita de que as águas em torno da Lagoa das Onças correm para o Xeruini e para o rio Branco, quando seca o rio Branco. Ou para o Demene, quando a vazante é do lado deste.

De qualquer forma, essa estreita faixa de mata entre as duas bacias foi classificada como a área mais frágil, o calcanhar de Aquiles, de toda a região estudada. "Bastaria abrir ali um canal de 100 metros e o rio Demene correria todo para a bacia do rio Branco, com alto impacto sobre os sistemas ecológicos em suas margens atuais", advertiu o coordenador da expedição. Segundo ele, a Lagoa das Onças deveria ser protegida de qualquer ação humana, pois o desmatamento, a exploração de produtos vegetais ou o excesso de circulação do homem, ali naquele ponto, poderiam mudar as feições de toda uma região.