Um grande quebra-cabeças ecológico sob o Equador


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE

Encontrar na Amazônia um lugar ainda inexplorado como exemplo prático para contestar o mito da floresta homogênea e sempre exuberante. Descobrir explicações para a altíssima biodiversidade amazônica. Identificar meios viáveis para inserir o desenvolvimento nesta paisagem desmistificada, sem levar à destruição ambiental.

Estas três idéias nortearam a escolha de uma área de 15 mil quilômetros quadrados no alto Demene, no estado brasileiro do Amazonas, para ali se realizar um modelo de zoneamento econômico-ecológico. A bacia do rio Demene é limitada pelas montanhas da fronteira Brasil-Venezuela, ao Norte; pelos campos lavrados da divisa Amazonas-Roraima, a Leste; pelo rio Negro, ao Sul e pela Serra do Aracá, a Oeste. Um quadrilátero perdido nos mapas, sobre o qual ninguém nunca lê nos livros ou jornais, e onde ainda não há conflitos capazes de interessar as TVs e a mídia internacional.

As populações ribeirinhas, presentes em quase todos os grandes afluentes secundários do rio Amazonas, só ocupam as margens do rio Demene junto à foz e somam apenas 31 famílias. No médio e alto Demene não existem casas, nem roças, nem malocas indígenas.

Apenas uma exceção e alguns vestígios de atividades sazonais quebram a ausência humana rio acima. A exceção é o posto indígena Ajuricaba, onde a Fundação Nacional do Índio, FUNAI, apóia algumas famílias ianomami, que ali buscam remédios e assistência, para depois se embrenharem novamente nas matas, seguindo sua tradição nômade.

Os vestígios de atividades sazonais ficam escondidos na vegetação das margens do rio: são abrigos de caça de uso comum, ou melhor, armações de madeira sem paredes ou telhado, que os caçadores ou extrativistas recobrem de palha para passar alguns dias, quando viajam.

A presença mais do que discreta de ribeirinhos ou índios confirmou, logo na primeira expedição, o baixo grau de modificações impostas pelo homem à bacia do Demene. Essa foi uma das razões para a escolha da área. Outra razão - a presença de vários sistemas ecológicos no lugar da floresta homogênea - dependia de confirmação na análise das primeiras imagens de satélite, mapas e dados preliminares, feita em Campinas, SP.

A floresta tropical densa e úmida é típica da região Equatorial, com altos índices de chuvas. Mas, na bacia do Demene, em plena linha do Equador e debaixo de 2.000 a 2.500mm anuais de chuvas, existem poucas florestas típicas (Foto). O Demene corta, antes, campos de altitude, campos de várzeas, campinas, savanas, dunas de areia, lavrados e palmeirais. Existem também igapós e outros tipos de floresta tropical úmida, embora menos exuberantes do que a mata amazônica cultivada pelo imaginário popular e internacional.


Foto: Clayton F. Lino/AE

Uma das razões para o Demene atravessar tantas e tão diferentes paisagens, em seus 600 quilômetros de extensão, é seu curso no sentido Norte-Sul. Das nascentes (a quase 2° N) até a foz (a 0° 45'S) são praticamente três graus de diferença na latitude. É suficiente para colocar o rio sob as influências dos diferentes climas e regimes de chuvas dos dois Hemisférios. A tais influências somam-se o relevo acidentado das nascentes e extremamente plano do médio e baixo curso. E acrescenta-se ainda uma história natural marcada por afluentes que mudam de leito e águas sucessivamente liberadas ou represadas pelas glaciações e períodos interglaciários. Definitivamente, o Demene foi cunhado pela transição.

A transição se expressa claramente na fauna. De acordo com os mapas acadêmicos, as áreas de distribuição de várias espécies amazônicas se encontram no Demene. Explicando melhor: é comum as espécies semelhantes, do mesmo gênero, terem territórios demarcados, separados por obstáculos naturais, intransponíveis para tais espécies: montanhas, rios muito largos, manchas de vegetação descontínua, etc. Na Amazônia, é até mesmo frequente existir uma espécie de arara numa margem de um rio e outra espécie do mesmo gênero, muito semelhante, do outro lado do rio. E isso acontece na bacia do Demene, onde, além do rio, a diversidade da vegetação e da paisagem contribui para a distribuição da fauna.


Foto: Luiz Prado/AE

A transição está presente também nas águas. Em seu trajeto desde as nascentes, as águas do Demene mudam de cor. Na Amazônia, a cor das águas é muito significativa. Lá existem os rios de águas pretas e os rios de águas brancas. As águas pretas significam pobreza. As águas brancas, abundância. Em quase tudo, à exceção dos impactos ambientais.

As águas pretas são escuras porque "lavam" solos muito pobres, ácidos e arenosos, do qual retiram a matéria orgânica em decomposição. A matéria orgânica libera ácidos húmicos. E a acidez inviabiliza os seres vivos da base da cadeia alimentar, incluindo, para grande alívio dos viajantes, as larvas dos mosquitos. Com poucos nutrientes e sem os pequenos organismos, a cadeia alimentar é pobre, existem menos peixes e crustáceos, menos predadores...


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

Junto aos rios de águas pretas, portanto, existem menos habitantes. A ocupação é mais esparsa, limitada pela pobreza das terras agricultáveis e pela escassez natural de produtos florestais, fauna e pesca.

Já as águas brancas carregam grande quantidade de sedimentos, dos quais se alimentam os organismos da base da cadeia alimentar. Por isso abrigam mais peixes, mais mosquitos, mais fauna, mais gente e mais destruição ambiental.

No Demene, as águas mudam de cor no meio do caminho, reforçando a característica de transição da bacia. No alto curso, suas águas são consideradas brancas. E as nuvens de piuns(*) confirmam a classificação dos caboclos. No médio e baixo curso, após receber as águas pretas dos igarapés Cuieiras e Tuiuiú, o Demene torna-se negro.

Todo esse emaranhado de características, fatores e surpresas fez do alto Demene um grande quebra-cabeças ecológico. Pacientes, os pesquisadores saíram em busca das peças de encaixe, às vezes escondidas na história geológica da região, às vezes camuflados pela dificuldade de acesso.


Foto: Luiz Prado/AE

Alguns lugares a que os cientistas e jornalistas se aventuraram durante as expedições eram desconhecidos até mesmo dos guias contratados, gente da região, acostumada a empreender longas jornadas mata adentro para extrair os produtos da floresta, caçar e pescar.

Ao fascínio das estranhas paisagens, fauna e flora inesperadas e quase intactas, somaram-se evidências de que o adjetivo inexplorado poderia sumir rapidamente dos cenários do alto Demene.

O barco da expedição cruzou com garimpeiros subindo para a área indígena, guiados por um funcionário da FUNAI, em busca de ouro. Pescadores artesanais entrevistados anunciaram os primeiros lances de uma guerra contra os barcos geleiros, vindos de Manaus para depauperar os recursos pesqueiros da área. Madeireiros, outrora restritos às ilhas do rio Negro, também subiam o Demene atrás de novas reservas de madeira de lei. A economia extrativista baseada em produtos tradicionais, como a sorva, piaçava e seringa, já apresentava sinais de decadência, devido à substituição desses produtos por sintéticos ou cultivos comerciais, nos mercados nacional e internacional.

As ameaças de destruição ambiental, em resumo, parecem se aproximar dessa área todas ao mesmo tempo, por vias diversas. Assim, a região traduz, de um lado, a possibilidade de desviar o rumo das atividades humanas para um modelo de desenvolvimento sustentável e, de outro, a urgência de fazê-lo antes que ali se instale o "desenvolvimento" caótico, sem planejamento ou medidas de proteção ambiental.

Amplamente testado em outras áreas da Amazônia, o "desenvolvimento" sem planejamento e sem regras é sinônimo de ocupação feita na base da picareta, motoserra e queimadas. Um modelo de grande impacto ambiental, pouco resultado econômico e graves conseqüências sociais. O primeiro passo para desviar esse "desenvolvimento" caótico para vias mais sustentáveis é o zoneamento econômico-ecológico.

Para fazer um zoneamento, o pesquisador tem de saber como funciona a natureza local: decifrar os sistemas ecológicos presentes na região; saber porque determinados tipos de vegetação ocorrem aqui e não ali; porque alguns animais preferem a margem direita do rio e não a esquerda... Aos enigmas naturais depois é preciso acrescentar as pressões humanas: conhecer as atividades já praticadas pela população residente e estimar as possibilidades econômico-sociais da região.

De posse desse conhecimento é possível saber quais os pontos frágeis dos sistemas ecológicos e qual a vocação econômica da região. É possível casar desenvolvimento com preservação, impondo restrinções às atividades que atingem os pontos ambientalmente frágeis e incentivando as atividades de baixo impacto ambiental e boa resposta econômica.

Parece complicado, mas os instrumentos hoje disponíveis facilitam muitas tarefas. Para a área escolhida no rio Demene, o primeiro gesto dos pesquisadores foi reunir todas as informações disponíveis, em mapas, imagens de radar e imagens de satélite. As primeiras análises, feitas ainda em Campinas, São Paulo, indicavam que a região possuía alta diversidade ecológica: pelo menos 18 sistemas diferentes foram identificados à primeira vista.

O palpite dos pesquisadores sobre a delimitação desses sistemas foi assinalado nas imagens de satélite e os roteiros da expedição principal foram definidos: as visitas começariam pelas áreas de maior dúvida, pelos pontos onde os limites ou as razões para haver diferenças na composição da vegetação eram confusos. E aqui cabe uma explicação: os sistemas ecológicos são mais fáceis de identificar, numa imagem de satélite, pelas diferenças na vegetação. A natureza não é feita de acasos ou caprichos. Se a vegetação de uma margem de rio é diferente da outra margem existem motivos: ou o solo é diferente ou a drenagem ou o microclima ou o relevo ou a influência dos ventos... A tarefa dos pesquisadores é definir se essas diferenças são marcantes a ponto de justificar o estabelecimento de um limite.

E tais definições, no caso do Demene, custariam aos pesquisadores diversas incursões na mata, nos braços de rio, muitas surpresas e alguns arranhões e picadas de insetos.