Entre o rio Negro e o Aracá


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: Luiz Prado/AE

Nas três expedições realizadas ao Demene, o barco de pesquisa (Foto acima) saiu de Manaus, Amazonas, e subiu o rio Negro até o arquipélago de Anavilhanas, uma Estação Ecológica relativamente respeitada pelos caçadores. Estranho conjunto de ilhas fluviais estreitas e extremamente compridas, as Anavilhanas são o habitat perfeito para centenas de espécies de pássaros: a mata sobre as ilhas ainda está intocada e oferece abrigo e alimento. Além disso, o rio é um obstáculo para os predadores maiores e, assim, as aves se reproduzem em paz, longe da ameaça de predação dos ovos e dos filhotes. De toda a viagem, Anavilhanas foi o trecho em que o maior número de araras foi avistado.


Foto: Cristina Mattos/Embrapa

O arquipélago fluvial também concentra grande número de peixes-boi, por oferecer capim semi-submerso (Foto), onde esses mamíferos fluviais pastam. O labirinto de canais entre as ilhas ainda significa proteção: quando os peixes-boi ouvem ruídos de motor de barco - e eles têm ouvidos extremamente sensíveis - fazem uso de suas poderosas caudas para se afastar o mais rápido possível. Os peixes-boi foram praticamente dizimados nesse trecho de rio, no século passado, quando Manaus era a capital da borracha e os senhores gostavam de ter a carne saborosa e farta em suas mesas. Os poucos que restaram aprenderam a fugir do homem, mas, vez por outra, ainda são capturados e mortos.


Foto: Liana John/AE

Percorridos cerca de 130 quilômetros de extensão do arquipélago Anavilhanas, o barco dos pesquisadores subiu direto até a cidade de Barcelos, porto de chegada da maioria dos produtos extrativos retirados do rio Demene e ponto de partida da expedição propriamente dita. Em Barcelos, nas duas últimas expedições( agosto de 1991 e janeiro de 1993) um avião aguardava instruções para o sobrevôo de reconhecimento. O roteiro foi traçado sobre a imagem de satélite da região e deveria abranger todos os sistemas ecológicos previamente identificados pelos pesquisadores.

Na primeira tentativa, em agosto, algumas dificuldades logísticas impediram o sobrevôo completo: o piloto não sabia voar por coordenadas geográficas, na base da bússola, e o combustível era suficiente para um roteiro sem erros. Algumas voltas a mais foram suficientes para excluir o reconhecimento aéreo dos sistemas ecológicos mais distantes. Em outras palavras, o piloto se perdeu e os pesquisadores tiveram de rastrear o caminho de volta a partir do curso do rio.


Foto: Rodrigo L. Mesquita

Uma névoa seca bastante espessa também dificultou o trabalho de reconhecimento áereo. Agosto é o auge da estação seca no Hemisfério Sul, tempo de queimadas. Além de prejudicar a visibilidade nas vizinhanças dos focos de fogo, a fumaça das queimadas percorre longas distâncias desde o Brasil Central até a floresta amazônica, na altura do Equador, acompanhando a circulação atmosférica de superfície, conforme constatado num experimento conjunto da NASA - a Agência Espacial Americana - e do INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Problemas à parte, o sobrevôo efetivamente executado pelos pesquisadores serviu de base para as visitas a campo a serem feitas a partir do barco. O reconhecimento aéreo é uma etapa intermediária importante no zoneamento ecológico. Comparando a imagem de satélite com o que vêem da janela do avião, os pesquisadores selecionam as áreas onde a amostragem é efetivamente necessária.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

A segunda tentativa de vôo, em janeiro de 1993, foi bem sucedida. Um piloto mais escolado levou pesquisadores e jornalistas à Serra do Aracá (Foto), onde o grande susto ficou por conta de um erro cartográfico.

O platô da Serra do Aracá (Foto abaixo) era pelo menos 400 metros mais alto do que o indicado no mapa. Se as nuvens fossem mais densas e o piloto confiasse integralmente no mapa, a Expedição Demene teria terminado em tragédia. Felizmente, a diferença foi reconhecida a tempo e o avião sobrevôou ileso imensas cachoeiras e cânions espetaculares, onde o homem branco jamais pôs os pés.


Foto: Rodrigo L. Mesquita/AE

Mais adiante, o sobrevôo do monte Rondon também reservava surpresas. Apesar da tarimba do piloto em navegar de acordo com o mapa, o monte simplesmente não estava lá. O jeito foi recorrer às imagens de satélite e mais um erro de cartografia foi assinalado: o monte Rondon fica bem mais a Leste do que dizem os mapas. Pelo menos ... quilômetros!


Foto: Altino Machado/AE

No caminho de volta, estranhas paisagens tornaram o avião pequeno para tantos cotovelos de fotógrafos. Lá embaixo, dunas de areia permeadas de tufos de vegetação circundavam águas rasas cheias de ilhotas verdes. Cenários de um paisagista invisível, para um público inexistente. Mais do que fotos, os pesquisadores e jornalistas levaram de volta para o barco a vontade de voltar, quem sabe com helicópteros, para finalmente pisar nestas terras desconhecidas e inacessíveis.