Dos desertos africanos aos rios Amazônicos


Texto de Jean-François Duranton, eco-botânico do CIRAD-PRIFAS.

Dr Duranton integrou a Expedição Demene de agosto de 1991 a convite do CNPM-Embrapa.


Foto: Rodrigo L. Mesquita/AE

No dia 9 de julho de 1991, Dr. Evaristo Eduardo de Miranda, da ECOFORÇA - Pesquisa e Desenvolvimento e do Núcleo de Monitoramento Ambiental, CNPM-Embrapa, propõe que eu participe de uma expedição ao norte da bacia hidrográfica do rio Negro. O objetivo era proceder a um zoneamento ecológico e uma avaliação do contexto sócio-econômico de uma região teste, de cerca de 15 mil quilômetros quadrados, para propor um manejo racional e harmonioso destes territórios, ainda preservados de uma ocupação humana agressiva.

Para um eco-botânico do PRIFAS, habituado à freqüentar o deserto e sahel africanos, a tentação foi grande de confrontar a pesquisa ecológica em meio à luxúria vegetal amazônica: dualidade de mundos, onde o déficit hídrico crônico cede lugar à hiper-umidade.

No dia 15 de agosto começamos com a fotointerpretação das imagens de satélite da área de estudo. A área se revela complexa. As imagens deixam entrever um mosaico estruturado de pelo menos umas vinte unidades fisiográficas, cujos limites parecem evidentes, mas cuja identidade resta, às vezes, fortemente enigmática.

No dia 18 de agosto, a equipe multidisciplinar está pronta, em Barcelos. Os trabalhos de campo podem começar. A tarefa de cada um é definida: coletar, disciplina por disciplina, o máximo de informação para descrever e compreender a estrutura (ver o funcionamento) das unidades ecológicas e apreender as modalidades de exploração humana a que elas estão sujeitas.

A logística disponível parece eficaz: uma base itinerária (barco amazônico de 23 metros), três botes a motor para as operações nas zonas de difícil acesso e algumas horas de avião para reconhecimento prévio da área de estudo.

No dia 19 de agosto, a despeito das condições ruins de visibilidade, o sobrevôo pôde ser efetuado. Alguns erros de navegação impõem uma modificação no plano de vôo: somente a porção ocidental da área de estudo é examinada. Parece, aliás, que tanto nos desertos como dentro desse oceano de vegetação, a navegação aérea visual é delicada, dada a ausência de relevo para constituir bons pontos de referência. Já as imagens de satélite, ao contrário, revelaram-se de uma impressionante precisão desde a primeira saída.

O inventário das unidades ecológicas agora se afina, porém a estrutura ecológica regional conserva seu mistério. A única certeza que se impõe, ao crepúsculo deste primeiro contato com o meio amazônico, é a diversidade de formações vegetais presentes. A gama é quase completa: do solo nú à floresta alta e densa. Esta diversidade de formações vegetais reflete a complexidade do meio, em resposta à dinâmica espaço-temporal das águas. Dá o que pensar sobre as gigantescas planícies monocromáticas representando a floresta amazônica em numerosos mapas ditos de vegetação... Não é, então, a ignorância, mais do que o conhecimento, que está cartografada?

No dia 20 de agosto começamos a subir o Demene. Longa divagação entre as duas telas verdes que constituem as orlas de floresta de igapó, bordejando o curso d'água: monotonia de formas, diversidade de identidades. Tudo se parece, mais do que varia, dentro da sutil distribuição das espécies. Será possível identificá-las ou, ali, o homem dos desertos será analfabeto, aniquilado pela profusão de espécies? O número de espécies por quilômetro quadrado de floresta amazônica pode alcançar e ultrapassar o observado em um mês e milhares de quilômetros de missão em zona desértica!


Foto: Luiz Prado/AE

O dia 21 de agosto é consagrado à exploração do igarapé Tuiuiú. A meta é asceder aos campos inundados, que ocupam o divisor de águas do rio Demene e do rio Xeruini. A floresta de igapó associada ao Demene dá lugar, progressiva, mas rapidamente, a uma formação vegetal mais clara, mais baixa onde aparecem novas espécies de palmeiras e novos arbustos e árvores, com folhas duras e recobertas de cera. O canal se fecha, o avanço se faz difícil por entre os ramos e galhos intrincados, que conferem à paisagem um aspecto bizarro e sinistro de um falso mangue. O contraste entre a cor clara das cascas da galharia e do negrume da água é o mais desconcertante.


Foto: Clayton F. Lino/AE

Uma segunda tentativa de penetração nos faz desembocar sobre um vasto lago de nanquim de onde emergem apenas amplos espinheiros de 10 metros de altura. Uma sondagem mostra que esses espinheiros são de fato as copas das árvores submersas por 4 a 5 metros de uma água muito preta. O mateiro, de origem indígena, conhece bem as múltiplas faces sazonais da região. Ele destaca que dentro de alguns meses (na estação seca) o pseudo-mangue se transformará em uma pradaria de ciperáceas (plantas da família das tiriricas, de folhas duras e cortantes). Até lá, a área servirá de pastagem aquática para os peixes-boi. A alternância de períodos de submersão e seca, além da hiperacidez das águas, contribuem para modelar o tapete vegetal e lhe conferem um aspecto surrealista.

Os dias 22 e 23 de agosto permitem explorar, sempre em pequenos botes, o rio Cuieiras: o barco grande fica na confluência com o rio Demene. Então começa a desfilar toda uma gama de formações vegetais naturais inconcruentes com as latitudes equatoriais onde a pluviosidade anual é da ordem de 2 mil a 5 mil milímetros. A floresta equatorial dá lugar a pradarias arbustivas aquáticas ou subaquáticas; dunas de areia branca (pura sílica); matos ou forrageiras de folhas largas e coriáceas, onde a fitomassa mal ultrapassa algumas toneladas de matéria seca por hectare. Aridez e acidez dos solos parecem responsáveis por estas paisagens intermediárias entre dunas marinhas tropicais e campos bretões, com espécies semelhantes (Foto) à que forram a Floresta de Fontainebleau.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA


Foto: E. E. de Miranda/ECOFORÇA

A prospecção dos maciços residuais do Alto Cuieiras reforça a perturbadora impressão de caleidoscópio vegetal. Saimos do igapó, atravessamos um cordão de floresta de terra firme, alta e densa, percorremos lajedos rochosos entremeados de charcos com gramíneas, antes de começar a escalar as rochas. Onde a água escorre pelo lajedo, a rocha está coberta por um lençol de algas e de utriculárias (minúsculas plantas carnívoras de flores amarelas e brancas). Outras encostas rochosas são colonizadas por campos de velosiáceas ou por pradarias. O cume e certas encostas são cobertos por uma floresta clara onde os traços de grandes mamíferos não são raros (antas, veados...). Tal diversidade fisionômica mostra como a flora reage aos contrastes ecológicos.

No dia 24 de agosto, algumas prospecções complementares são efetuadas no Baixo Cuieiras. O mosaico colorido da imagem de satélite se torna dia a dia menos hermético. Nas áreas prospectadas, cada tom de cor agora se reveste de um significado. A precisão da imagem ajuda, de forma fabulosa, a interpretar a disposição espacial dos elementos que compõem a paisagem. O quebra-cabeças ecológico se organiza, porém é ainda mais complexo do que prevíamos. Convém, então, integrar a herança do passado geológico, morfopedológico e paleoclimático para compreender a evolução dos solos e da dinâmica das águas (deslocamentos dos cursos d'água, capturas, formação de lagos e deltas interiores). Os ciclos sucessivos de erosão e de sedimentação se inscrevem na paisagem. Deserto africano, meio amazônico, a natureza resta como um livro aberto, ainda falta saber ler. Se as palavras são diferentes, a sintaxe parece a mesma e o diálogo permanente entre as imagens de satélite e o trabalho de campo constitui a pedra de toque desse decifrar ecológico.

No dia 25 de agosto, efetua-se uma tentativa de atingir a bacia do rio Xeruini à montante da Lagoa das Onças. Reencontramos as formações de pseudo-mangue e as águas negras e, ali também, nosso avanço é interrompido em razão da densidade da vegetaçdo e da presença de ninhos de cabas (espécie de vespa de picada dolorosa). Apesar de não termos atravessado nos parece que a bacia do Demene e do Xeruini comunicam-se durante a cheia: um belo exemplo de anastomose da rede hidrográfica.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

A tarde é parcialmente consagrada à visita ao posto indígena (ianomamis) de Ajuricaba. Dois universos se aproximam sem se tocar: o do homem, parte integrante da natureza, e o universo da cultura ocidental para o qual a natureza "hostil" deve ser dominada e explorada, sob o risco de ser destruída. Estas duas concepções se inscrevem na paisagem ao longo de todo o trajeto de volta.

Nos dias 26 e 27 de agosto a missão chega ao fim com a longa descida do rio Demene, última ocasião de rever ao inverso parte do "filme" dos últimos dias. Revisão salutar que permite afirmar certas hipóteses de trabalho, confirmar outras e ajuntar as peças do quebra-cabeças ecológico num todo coerente. Lenta alquimia intelectual para elaboração de uma síntese preliminar, que coloca mais problemas do que resolve. Uma nova série de pesquisas mais dirigidas se impõe.

Nos dias 28, 29 e 30 de agosto, rápida incursão pelo rio Branco e curso inferior do Xeruini. Depois, a descida do rio Negro até Manaus. A presença humana se faz sentir progressivamente e, em numerosos locais, a floresta deu lugar aos campos. A vegetação secundária forma uma série evolutiva de reconstituição, o que se observa facilmente nas margens do rio. Desde logo a originalidade do Demene torna-se mais perceptível.

As impressões, as emoções do dia a dia devem agora ser corrigidas, ponderadas, relativizadas, hierarquizadas, confrontadas com a literatura a fim de se fazer um balanço da expedição. Desde já parece claro, porém, que diante de um ambiente assim complexo, o zoneamento ecológico é uma abordagem indispensável para um manejo racional e harmonioso destes territórios. É preciso não esquecer que se nós não comandamos a natureza, mas a obedecemos (**), ainda falta conhecer as leis...

(**) F. Baccon, Novum Organum, 1620