Alta diversidade teve origem na glaciação


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

O oceano de matas e águas doces explorado pelas populações ribeirinhas do alto Demene, no estado do Amazonas, apresenta diversidade ecológica das mais altas em toda a região amazônica. Na área de 1,83 milhão de hectares abrangida pelo zoneamento econômico-ecológico da Expedição Demene foram identificados pelo menos 30 sistemas diversos. Além da mata de terra firme, da mata de várzea inundável (igapó - Foto) e das ilhas, comuns em outras partes da Amazônia, a bacia do Demene abriga campos de altitude, cordões arenosos, palmeirais, alagados, campinas, zaruzaruzais e outras tantas formações vegetais.


Foto: Rodrigo L. Mesquita

Depois de reconhecer os limites desses sistemas ecológicos nas imagens de satélite e radar, após ter feito um reconhecimento aéreo e ter ido a campo verificar o tipo de vegetação e as espécies presentes nesses sistemas, os pesquisadores se reuniram para discutir as origens de tamanha diversidade. "A vantagem de levar a campo uma equipe multidisciplinar é a de poder juntar, depois, as diversas visões segundo a especialidade de cada um e assim decifrar enigmas complexos como os que encontramos no alto Demene", assinala Evaristo Eduardo de Miranda, do Núcleo de Monitoramento Ambiental, CNPM-Embrapa. O objetivo dos pesquisadores, nessa equipe multidisciplinar, é explicar porque ocorrem tantas formações vegetais, tão diferentes, numa região com chuva e calor suficiente para produzir uma floresta tropical, úmida, densa e homogênea.

As primeiras discussões entre os integrantes da expedição indicam que a explicação repousa em outras eras geológicas. É sabido que o Amazonas foi um rio mais profundo, quando o oceano estava cerca de 100 metros mais baixo, num período de glaciação. Durante as glaciações, os oceanos ficam mais baixos porque muita água se congela sobre os continentes. Quando o gelo dessa última glaciação derreteu e o mar subiu, as águas do Amazonas foram bloqueadas pelo oceano e o rio modificou seu leito, sedimentando o fundo e espalhando as águas pela planície amazônica.

Numa lenta reação em cadeia, as águas do rio Amazonas também bloquearam a saída de seus afluentes e estes, por sua vez, bloquearam as dos próprios afluentes. Por um bom período geológico, então, a bacia amazônica foi um conjunto de grandes lagos.


Foto: Cristina Mattos/Embrapa Monitoramento por Satélite

Conforme a hipótese levantada na expedição, no alto Demene, os lagos formados pelo rio Negro teriam alcançado os limites onde hoje se desenham os campos de vegetação aberta (Foto acima), alagados e palmeirais. "Podemos identificar nas imagens de satélite algo que nos parece a sedimentação dos lagos, que é diferente da sedimentaçdo dos rios", diz Miranda. Até mesmo alguns dos cursos d'água que cortavam esses lagos, em deltas fluviais, são visíveis. Segundo o pesquisador, à medida em que os rios foram se acomodando, cavando novos leitos e correndo mais rápido para o mar, os lagos deixaram de ser permanentes e se tornaram os alagados e campos inundáveis de hoje.

Cada situação particular de relevo, microclima e hidrografia, deu chance a uma formação vegetal diferente. Assim, nas zonas extremamente planas, entre o Demene e o baixo Cuieiras, a água ainda não tem para onde escorrer durante as cheias, acumulando-se no solo durante oito meses por ano. "Onde a água fica estagnada e só seca por decantação, crescem apenas palmeiras capazes de resistir a essa asfixia temporária: os buritis, caranãs e tulias", conta o botânico Jean-François Duranton. "Essas palmeiras perdem as folhas e mantém um compasso de espera enquanto estão com os pés na água. Em fevereiro, quando a água seca, as palmeiras tem a sua primavera: lançam folhas novas, flores e frutos e realizam seu máximo de atividade fotossintética".

Nas áreas de solos muito pobres e arenosos, ondem correm igarapés de águas pretas, os antigos lagos deram lugar a campos alagadiços de água corrente. É o caso, por exemplo, dos zaruzaruzais e campos drenados pelo igarapé Tuiuiú, onde os pesquisadores puderam observar processos violentos de acidificação. No Tuiuiú, a água é mais preta e as plantas denunciam a pobreza e acidez extremas do solo. "São espécies semelhantes - em forma, folhas e estratégia de crescimento - às árvores que encontramos nos mangues do litoral", observou o botânico Duranton. "Enquanto as plantas de mangue tem essa forma para resistir à águas salobra e à pressão diária das marés, na minha opinião, essas plantas do Tuiuiú usam a mesma estratégia para resistir à acidez e às inundações anuais", completa.


Foto: Clayton F. Lino/AE

Seguindo ainda tal raciocínio, os pesquisadores acreditam que o próprio rio Negro foi deslocado de seu leito pela chegada de sedimentos vindos do norte, sobretudo durante as glaciações quando a velocidade dos rios vindos da Venezuela era maior. Hoje o Negro corre de 10 a 15 quilômetros mais ao sul do seu antigo leito, no trecho próximo de Barcelos. E nas áreas correspondentes ao antigo leito, hoje sedimentado, crescem palmeirais.

Todas essas hipóteses sobre os antigos lagos do Demene ainda precisam ser confirmadas com o recolhimento de amostras de areia. "Se ali realmente existiram lagos, a areia deverá estar separada em grãos mais finos, brilhantes e angulosos, no início do delta fluvial, e grãos mais grossos, opacos e arredondados, na área de sedimentação do lago", explicou Luiz Eduardo Mantovani, geólogo do CNPM. Ele esclarece que a análise das areias é uma prática comum em geologia e pode esclarecer muito sobre a diversidade encontrada no alto Demene.