Cuieiras, o fóssil de um rio


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: Luiz Prado/AE

Dentre todas as surpresas que intrigaram os pesquisadores durante a Expedição Demene, as estranhas paisagens do alto Cuieiras exerceram o maior fascínio. Na manhã do dia 22 de agosto de 1991, com o objetivo de levantar dados para o zoneamento econômico-ecológico da região, dois botes deixaram o barco principal, para uma viagem de três dias pelo Igarapé Cuieiras.

O Cuieiras nasce na Serra do Aracá, a 80 quilômetros de sua desembocadura no rio Demene. Ao longo de suas margens, barrancos de uma areia muito branca dispõem-se irregularmente e, sobre eles, uma estranha combinação de líquens e arbustos baixos lhes confere um aspecto nada amazônico.

Nos botes, além de dois barqueiros da região, seguiram dois pesquisadores do Núcleo de Monitoramento Ambiental, um botânico francês convidado, um professor da Universidade Paulista e dois jornalistas da Agência Estado. A subida levou cerca de seis horas por entre os meandros e cotovelos do igarapé e sob o sol amazônico. No início, ainda apareceram alguns botos e uma ariranha ligeira, mas no médio e alto Cuieiras a fauna se limitou a uma ou duas garças reais e raros passarinhos, araras e papagaios. Já no alto Cuieiras, a visão do primeiro morro (Foto) impressionou e foi festejada. Após oito dias de pura planície no barco principal, encarar 300 metros de altitude, de rocha viva e rala vegetação é, no mínimo, inusitado.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

Os morros contornados pelo igarapé Cuieiras são de arenito e estão cercados por uma estreita faixa de mata de terra firme. Popularmente chamados de Serrinha, tais morros são testemunhos do relevo do passado - cerca de dez milhões de anos atrás - quando toda região sofreu um soerguimento. Com o tempo, as chuvas e os cursos d'água foram formando a bacia sedimentar onde hoje corre o Cuieiras. O que sobrou - para contar a história - foram as pedras mais duras, hoje expostas aos contrastes do clima local. Pequenas incrustrações de mica preta - ou biotita como preferem os geólogos - assinalam que tais pedras sofreram grandes pressões antes ainda do soerguimento, quando estavam a uns 15 quilômetros dentro do solo.

Sobre a pedra pura dos lajedos, sobram placas soltas, como se os morros estivessem descascando debaixo do sol equatorial. As placas de pedra servem de abrigo para um lagartinho (Foto), de 15 centímetros de comprimento, da família dos iguanas, que tem boas chances de ser uma espécie endêmica, ou seja, uma espécie que só existe naqueles lajedos.


Foto: Cristina Mattos/Embrapa Monitoramento por Satélite

Segundo o biólogo José Roberto Miranda, do CNPM, os morros e sua vegetação muito rara e peculiar funcionam como uma ilha para a fauna. "A existência desse habitat diferente de tudo em volta, durante milhares de anos, talvez milhões, possivelmente levou a uma especiação e é muito provável que aqui existam espécies endêmicas", explicou. Alguns lagartinhos capturados pelo biólogo seguiram para São Paulo, onde serão identificados.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

Junto às pedras nuas onde correm os lagartinhos, escorre bastante água e crescem musgos e líquens. Em alguns pontos, onde se acumulam ralas camadas de solo úmido, crescem flores amarelas e brancas muito pequenas, quase sem folhas, com caules da espessura e comprimento de um alfinete. "Essas plantas são carnívoras e tem sua estrutura de absorção dos animaizinhos de que se alimentam localizadas nas raízes", observou o botânico Jean-François Duranton, do CIRAD-PRIFAS, um instituto francês de pesquisa agropecuária.

Presas nas raízes das florezinhas existem minúsculas bolsas. Assim que os bichinhos entram, a boca das bolsas se contrai e aprisiona as vítimas, que serão digeridas lentamente. Segundo Duranton, esse gênero de plantas carnívoras é típico de alagados e também ocorre na beira de algumas lagoas da África.

Convivendo com as plantas carnívoras, sobre a aridez do lajedo crescem ainda tufos de "canela de ema", um gênero de planta característico das áreas mais pobres e encharcadas do cerrado, no Centro-Oeste brasileiro. Só que estas "canelas de ema", ou velosiáceas, são muito menores no lajedo, parecendo uma versão miniaturizada dos desertos de pedra e oásis de tamareiras do Saara, lá chamados de Hammada. No topo de alguns morros da Serrinha, cresce ainda uma mata baixa, cheia de gravatás e espinhos, onde havia rastros recentes de anta, veado e uma manada de porco cateto.

As estranhas formações do alto dos morros não esgotaram todas as surpresas do alto Cuieiras. Nas margens do igarapé, já no retorno, os pesquisadores desceram em alguns dos barrancos de areia branca, que se erguem de 4 a 5 metros acima do nível máximo do rio. "Considerávamos a ocorrência dessas areias, espalhadas ao longo das margens do Cuieiras, um dos nossos maiores desafios em termos de explicação ecológica", comentou o ecólogo Evaristo Eduardo de Miranda, do CNPM. "Isso até chegarmos aos barrancos, onde a explicação ficou evidente".

Bancos de areia branca são comuns nos rios amazônicos de águas pretas. As areias são o resultado de um solo pobre muito lavado, daí a cor branca. São carregadas pelas águas e depositadas onde o rio faz curvas, do lado de dentro dos meandros, formando os bancos, que ficam inundados durante as cheias e são chamadas de "praias". Mas as areias do Cuieiras não são inundáveis, não coincidem com os atuais meandros e são mais brancas do que a areia das "praias".


Foto: Clayton F. Lino/AE

"Ocorre que o Cuieiras, no passado, foi um rio muito mais largo do que é hoje. Suas águas arrastaram grandes quantidades de areia e sedimentos daqueles morros de arenito lá de cima e, depois de milhares de anos, seu leito ficou tão assoreado que já não comportava toda a água da bacia", esclareceu Miranda. Agora, parte das águas corre pelo fundo do paleo-leito do Cuieiras e parte corre por dentro das areias, onde era o antigo leito, mais largo. Tecnicamente, isso se chama inferofluxo. "Essas areias dos barrancos formam cordões nas margens do atual igarapé e são o testemunho do paleo-leito do Cuieiras", complementou.

Sobre tais cordões arenosos, condições muito especiais de solo e microclima dão origem a uma vegetação fora dos padrões amazônicos. Ao invés da mata de terra firme, da mata de igapó ou mesmo dos campos abertos das áreas próximas, crescem arbustos baixos e moitas com folhas duras e recobertas de cera, típicas de plantas especializada em economizar água.

"Em plena Amazônia e debaixo de 2 mil milímetros de chuva por ano, é surpreendente encontrar plantas análogas à que existem no Sahel, às margens do Saara", afirmou Duranton. Segundo o botânico francês, esse gênero de planta está ali porque as areias não conseguem reter a água das chuvas e as raízes não alcançam a água do rio. As plantas acabam vivendo grandes períodos de seca, sobretudo na vazante, apesar de estarem do lado da água e em pleno Equador.

Para acrescentar um toque surrealista ao quadro de contrastes, aos pés dos arbustos semi-desérticos crescem diversas espécies de líquens, semelhantes a esponjas. Líquens são associações de algas e fungos "e os desse gênero ocorrem também nas florestas de Fointainebleau, na França", disse Duranton. "Sua presença nesse ambiente indica que os solos são muito ácidos e a umidade do ar é alta, pois eles são especialistas em viver nestas condições".

Os líquens tornam esse ambiente dos cordões arenosos extremamente frágeis ao contato com o homem. Eles são muito inflamáveis e espalham o fogo rapidamente em grandes áreas. Um acampamento de caça encontrado pelos pesquisadores e usado, provavelmente, na vazante, estava cercado por uma grande área queimada. "Não há muito problema agora, porque ainda é muito baixa a frequência de caçadores e não existem assentamentos humanos em todo o Cuieiras", observou Evaristo Miranda. "Mas, potencialmente, essa é uma área frágil, onde a presença humana pode trazer grande impacto ambiental".