A Realidade Fora-da-Lei da Caça de Subsistência


Texto de Gabriel Nogueira, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: Cristina Mattos/Embrapa Monitoramento por Satélite

O Nazaré Atlético Clube é o principal ponto de encontro da juventude de Barcelos, última cidade na margem do rio Negro, antes da foz do rio Demene. No dia 17 de agosto de 1991, os pesquisadores da Expedição Demene, registraram ali uma cena comum: um leilão de objetos e animais assados (entre os quais uma grande tartaruga tracajá), com o objetivo de angariar fundos para a festa de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira de Barcelos.

O comércio de animais silvestres, se houver flagrante, é crime inafiançável na lei brasileira. Na festa, dois soldados da Polícia Militar do Amazonas garantiam o leilão, mas ignoraram a tartaruga arrematada. Ninguém estranhou, exceto os visitantes. Nos 122 quilômetros quadrados do município de Barcelos - uma área mais extensa do que Portugal - a caça e pesca predatória estão entre as maiores ameaças ao equilíbrio dos sistemas ecológicos. Mas, para os ribeirinhos, como para boa parte da população da Amazônia, os animais silvestres são a principal fonte de proteína alimentar e a necessidade é maior do que a lei.

Em Barcelos, em particular, há uma grande demanda por todo tipo de caça e pesca - sobretudo antas, macacos, cotias e peixes-boi - pois não há atividade pecuária nem avicultura na região. São consumidas pelo menos 29 espécies de animais protegidos pela legislação ambiental. Toda semana, barcos de transporte de passageiros provenientes de Barcelos - os recreios - tem sua carga de animais silvestres apreendida em Manaus. Mas não adianta.

A fábrica de gelo é o centro das atividades de caça e pesca do município. Oito barcos geleiros comercializam peixes e caça da região do Demene, Aracá e Negro, sendo um deles da prefeitura. Munidos de caniços, linhas, redes, arpões e espingardas, os barcos costumam ficar fora uma semana, em média. Voltam com os porões cheios de peixes e carne de caça: uma tonelada nos barcos maiores e 300 a 500 quilos nos menores. "Em cada viagem vêm dois ou três peixes-boi, cada um com 80 a 100 quilos", conta Raimundo Lira, dono da fábrica de gelo. O peixe-boi (Trichechis inunguis) está entre as espécies mais ameaçadas de extinção. Muito caçado durante o ciclo da borracha, desenvolveu um ouvido apurado e foge ao menor barulho de motor de barco. Mas esta estratégia é inútil contra canoas a remo e o conhecimento de seus "pastos" sub-aquáticos, onde são apanhados sistematicamente.

A carne de peixe-boi é conservada na própria gordura e guardada em latas. Essa conserva é chamada "mexira". Quando a carne vem salgada o preço é 30% mais baixo. "A melhor carne do mundo é a do peixe-boi. O macaco tem a carne muito dura", comenta o "capitão" Francisco Miguel, líder da comunidade indígena baniwa, do povoado de Pai Raimundo, no baixo Demene. Segundo ele, a caça de antas, porcos-do-mato e pacas é mais farta à noite, entre setembro e outubro. A pesca melhora a partir de outubro, quando os rios começam a secar. O paladar não o influência: "o que aparecer na frente a gente pega", diz.

Como em Pai Raimundo, nos outros povoados do Demene, as espécies mais capturadas são a piranha e a paca, para enriquecer a dieta quase exclusiva de farinha d'água dos habitantes. Não há muita fartura e eles ainda enfrentam a concorrência dos caçadores profissionais, que vivem em barcos com a família, não têm roça e conhecem os melhores lugares para pegar cada tipo de animal. Devido à pobreza da fauna nas margens do rio Negro, a área de influência do Demene é uma das preferidas pelos caçadores. O regime diferenciado das águas do Demene também favorece a ação dos caçadores e pescadores profissionais. Quando as águas baixam no Demene estão altas em outras regiões mais próximas da capital e assim a caça profissional quase não tem entressafra.


Foto: Clayton F. Lino/AE

Francisco de Assis Bittencourt (Foto), um caboclo de 41 anos, é um desses caçadores profissionais. Mora num barco com a família, um irmão e um amigo e faz o percurso dos rios. "Não gosto de morar na cidade, fico muito preso", explica, ao oferecer à equipe da Expedição Demene 40 quilos de carne de peixe-boi. Mesmo com a recusa de compra dos pesquisadores, em pouco tempo a carne havia sido vendida. "A gente mata o peixe-boi nos lugares onde ele está comendo. Fica bem quieto. Quando ele sobe à tona para respirar, arpoa ele", conta Francisco. Quando passa às mãos de intermediários, a carne de anta ou peixe-boi chega a triplicar de preço antes de atingir os mercados clandestinos de Manaus e outras cidades médias, onde a população oriunda do interior mantém os hábitos alimentares inalterados.

Paralelamente aos caçadores, há barcos geleiros exclusivamente de pesca. Eles levam pelo menos 12 pescadores a bordo e em 15 dias carregam cerca de 6 toneladas, dando preferência a tucunarés, tartarugas e peixes-boi. Outro tipo de barco, os regatões, também concorrem com os moradores pela caça da região. Os regatões são barcos-mercearias. Trocam produtos alimentícios e, principalmente, cachaça por caça e pesca. Além disso, os regatões mantém caçadores agregados, que saem do barco principal em pequenas canoas e embrenham-se no igapó (matas inundáveis) em curtas caçadas. Na região do Demene são 20 regatões com uma média de 10 caçadores agregados por barco. Em cada viagem de duas a três semanas têm um lucro aproximado de 100%, conforme admite Edson Rodrigues, o "Pagão", assim conhecido devido à sua maneira dura de negociar.

O sociólogo Renato Cabral, do Núcleo de Monitoramento Ambiental, CNPM, acha que a pesca e a caça devem ser permitidas para os ribeirinhos do Demene (pouco mais de 150 pessoas), mas o comércio deve ser reprimido na cidade de Barcelos, a fim de evitar o desequilíbrio. "Não há grande impacto ambiental com o consumo de subsistência de um pequeno grupo de moradores", acredita o sociólogo. "Já a comercialização é danosa, pois exige sempre mais do que os recursos naturais podem produzir".