Quatro cenários de futuro para o Demene


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE

Os primeiros resultados do modelo de zoneamento econômico-ecológico, realizado pelos pesquisadores da Expedição Demene, permitiram a classificação de um total de 36 unidades ecológicas diferentes no alto Demene. A classificação reforça a impressão inicial de que a área escolhida é uma das mais diversificadas da Amazônia brasileira. Ao mesmo tempo em que abriga alta biodiversidade, entretanto, o alto Demene é também marcado pela extrema pobreza dos solos e baixa produtividade da vegetação. Cruzando por computador os dados dos cinco principais mapas resultantes da expedição, os pesquisadores puderam responder quais dentre estas unidades são as mais sensíveis, as mais frágeis, as mais ameaçadas e as menos ameaçadas, e traçar cenários que ajudem a planejar a ocupação racional da área.


Foto: Luiz Prado/AE

Em todos os cenários de futuro delineados a título de ensaio pelos pesquisadores, as unidades mais ameaçadas pelo homem são os chamados diques marginais. Na linguagem local, os diques marginais são barrancos de terra firme que chegam até a margem dos rios, onde estão instaladas a maioria das comunidades de ribeirinhos. Nestes diques marginais, a floresta de terra firme, mais densa e rica em espécies passíveis de exploração, está próxima dos canais de escoamento dos produtos extrativos, ou seja, na beira dos rios. "Nestas áreas estão as madeiras que tem mercado; estão as sorveiras, das quais se tira látex; está a caça que alimenta os ribeirinhos; ocorre o solo menos pobre, onde a agricultura é possível e tudo isso junto dos canais de escoamento, que são chaves para qualquer tipo de exploração. Daí serem estas as unidades ecológicas mais ameaçadas", explica Evaristo Eduardo de Miranda, pesquisador do Núcleo de Monitoramento Ambiental, CNPM-Embrapa, e coordenador da Expedição Demene.

No lado oposto da escala de áreas sensíveis, frágeis e ameaçadas estão as unidades definidas pelos pesquisadores como deltas interiores ou planícies de inundação fluvial. São depressões localizadas entre os leitos dos rios principais, de água estagnada, solos extremamente pobres, baixíssima produtividade e acesso muito difícil. "Estas estão protegidas por sua própria natureza: não há o que extrair de lá, não há como chegar de barco porque o capim alto dificulta a navegação e não há vias terrestres pois a profundidade da água impede a caminhada", complementa Miranda.

A classificaçâo das unidades de acordo com seu grau de sensibilidade e fragilidade e conforme sua dinâmica ecológica serve, por exemplo, para definir áreas de proteção e conservação, organizar o uso da terra e delimitar as zonas de extrativismo com critérios que unam a preservação ao desenvolvimento.

O zoneamento do alto Demene foi elaborado sobre cinco mapas básicos: o de solos, o das formações vegetais, o hidrológico ou das águas, o topográfico ou do relevo e o geomorfológico ou das formações geológicas. Cada um desses mapas tem vários níveis de detalhe e é dividido em unidades diversas, de acordo com sua lógica e dinâmica própria. Em média, cada um dos mapas tem 20 unidades ecológicas diferentes e a síntese de todos os mapas, feita no sistema de informação geográfica, deu origem às 36 unidades ecológicas classificadas no alto Demene. Miranda enfatiza que "o cruzamento dos mapas por computador, nos sistemas de informação geográfica, é fundamental porque permite agregar problemas ou responder a perguntas específicas, o que torna esse tipo de zoneamento mais adequado à realidade amazônica, extremamente complexa e com novos fatores, problemas e impactos ambientais surgindo a todo instante".

Ele exemplifica apontando 4 cenários possíveis para o alto Demene, uma região ainda desabitada, de vocação essencialmente extrativista. O primeiro cenário seria o "deixa como está para ver como fica". Ou seja, imaginando que não se tome nenhuma iniciativa de proteção ou intensificação da exploração, o que mudaria com o passar do anos nas unidades ecológicas do alto Demene?


Foto: Luiz Prado/AE

De acordo com Evaristo Miranda haveria uma lenta degradação dos diques marginais pela exploração progressiva da madeira e predação das tartarugas fluviais, de longe a espécie mais ameaçada pela ação humana. "As tartarugas estão mais expostas do que os peixes ornamentais (em segundo lugar na lista) porque são predadas pelo homem praticamente o ano todo, têm seus ovos também predados e não tem um refúgio, ficam expostas, acessíveis aos canoeiros e barqueiros", explica o biólogo José Roberto Miranda, também do CNPM. Já os peixes ornamentais tem uma defesa natural, quer dizer, durante uma época do ano, justamente na fase de reprodução, eles ficam protegidos pelas enchentes e assim estão relativamente garantidos para os níveis atuais de coleta. Além da degradação dos diques e gradativo desaparecimento das tartarugas, muito pouca coisa mudaria no Demene, neste primeiro cenário. A mitigação possível, no caso do impacto sobre a população de tartarugas, poderia vir pela via da educação ambiental, do estabelecimento de um período de defeso com fiscalização intensa ou com o controle dos mercados e transportes. "Todas, medidas muito fáceis de se adotar já que a população é pequena e tudo se transporta através dos rios", diz Evaristo Miranda.

Imaginando um segundo cenário, também bastante possível, em que a situação econômica dos ribeirinhos piorasse, a degradação ambiental poderia ser menor do que a atual. Diante, por exemplo, de surtos de malária ou cólera ou quedas ainda maiores do que as atuais nos preços da mandioca e dos produtos extrativos, a tendência da população ribeirinha seria migrar para os centros urbanos, utilizando os recursos naturais do Demene cada vez menos. Neste caso seriam necessárias medidas de cunho social, mas a natureza sairia beneficiada pela ausência de ocupação humana.


Foto: Rodrigo L. Mesquita/AE

Num outro cenário, em que, ao contrário, os preços de mercado dos produtos extrativos aumentasse, haveria uma intensificação da exploração, com diferentes impactos para cada produto, todos quantificáveis no processo de zoneamento econômico-ecológico e todos passíveis de mitigação. O aumento do preço da sorva, por exemplo, intensificaria a extração do látex usado na fabricação de chicletes. O impacto ambiental seria baixo, porque a sorveira não é cortada, mas "ordenhada" como as seringueiras.

O aumento da caça, sim, poderia ter algum impacto sobre as espécies mais procuradas, que se tornariam rapidamente mais escassas nas florestas de beira de rio. Ainda assim, a menos que muitos caçadores de fora invadissem a região, com técnicas e armas mais aperfeiçoadas, seria difícil acabar totalmente com os estoques de caça, uma vez que existem muitas áreas de difícil acesso ao homem para os animais se refugiarem. Hoje a caça se limita aos animais encontrados a um dia de caminhada ou um dia de canoa, pois não há como transportar a carne da caça por longas distâncias por falta de estradas, nem há como salgar as peças dado o alto teor de umidade natural da região.

Mesmo a entrada de barcos geleiros - que atualmente preocupa os ribeirinhos, porque os geleiros podem estocar e caçam comercialmente - é limitada pelo regime das águas: os geleiros só entram no Demene na cheia, quando a caça é mais difícil. Seu impacto só deve afetar, portanto, até a embocadura do rio Aracá, onde eles podem entrar normalmente em tempo de vazante. De acordo com José Roberto Miranda, os impactos da intensificação da caça poderiam ser facilmente contornados com um simples acompanhamento de povoamentos faunísticos para manter os estoques naturais: se um animal começa a se tornar raro são definidos períodos de defeso com fiscalização nos rios. Isso naturalmente, dependeria de uma legislação de caça que não tapasse o sol com a peneira, proibindo pura e simplesmente a caça e colocando todo o país no mesmo nível de criminalidade, sejam caçadores de subsistência como os ribeirinhos do Demene, ou caçadores comerciais, como os de barcos geleiros.


Foto: Rodrigo L. Mesquita/AE

A intensificação das atividades extrativas, ainda dentro do cenário 3, poderia trazer novas indústrias de palmito para a região sem grandes impactos sobre os palmitais, que são imensos e pedem extração especializada. Também a extração de piaçaba se manteria praticamente inofensiva ao meio ambiente. Em ambos os casos, a extração poderia ser intensificada e poderia ser incentivado o desenvolvimento através de pequenas indústrias beneficiadoras, tirando os extrativistas do círculo vicioso dos preços baixos. Ainda assim, o impacto ambiental seria pequeno. "Essa poderia ser uma das alternativas racionais de desenvolvimento sustentado para o alto Demene", reforça Miranda.

O quarto cenário montado pela equipe de Miranda seria o de investimentos intensivos, dirigidos para um modelo de desenvolvimento sustentável. "Se o governo ou as entidades ambientalistas quisessem desenvolver o alto Demene de uma forma racional poderiam investir na intensificação e diversificação da agricultura, na melhoria dos sistemas extrativistas de alguns dos produtos mais rentáveis, em saneamento e no controle dos impactos ambientais, no caso de aumento repentino da demografia", sugere Evaristo Miranda.

Em outras palavras, com investimentos não muito altos se conseguiria elevar a qualidade de vida dos ribeirinhos e minimizar o impacto ambiental de hoje e do futuro. O primeiro passo seria o investimento em saneamento e higiene, para reduzir o nível de doenças como malária e verminoses. O trabalho seria simples porque a densidade humana é baixa e o controle de insetos vetores é fácil, uma vez que os rios são de águas pretas, ou seja, águas extremamente ácidas onde não se desenvolvem larvas de insetos vetores. A malária do alto Demene existe devido à falta de cuidado com poças d'água e esgotos a céu aberto nas cidades e povoados. A região não é naturalmente propícia aos mosquitos e um plano adequado de combate seria fácil de executar, além de barato.

A intensificação e diversificação da agricultura visaria a complementação alimentar durante o período de cheia, quando a pesca é difícil e a população recorre à caça. Parte da pressão sobre os animais silvestres poderia ser reduzida se a população tivesse proteínas vegetais para estocar e se alimentar durante a cheia. Isso quer dizer basicamente, se eles tivessem acesso a variedades de feijão e milho adaptadas às condições de clima, umidade e solo da região. As variedades já foram desenvolvidas por vários centros de pesquisa da Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária , só não são acessíveis aos agricultores porque eles estão longe dos centros de pesquisa. Além dos grãos básicos, seria importante aumentar a quantidade de frutas plantadas. "Não frutas leves, como as que consumimos no Sul, de sobremesa, mas frutas que alimentam, como jaca, banana, abacate", diz o coordenador da expedição.

A intensificação da agricultura poderia ser feita sem o aumento da área plantada e, portanto, sem necessidade de desmate, se os agricultores tivessem acesso a sistemas de produção mais eficientes. Uma sugestão bastante apropriada para a região, indica Luiz Eduardo Mantovani, seria a adoção das técnicas indígenas que deram origem às chamadas "terras pretas dos índios". As terras pretas são manchas de solo mais rico em matéria orgânica, observadas pelos geólogos ao longo das margens de alguns rios amazônicos onde a ocupação indígena é histórica e permanente. São nações indígenas que não adotaram o sistema de derrubar e queimar, mas contribuiam permanentemente para o aumento da fertilidade do solo misturando à terra restos de pescaria, cinzas de fogueira, sobras de cozinha e restos de culturas. "Ao longo de décadas, as manchas de solo que eles ocupavam foram se tornando mais férteis, são como sambaquis sem conchas", define Mantovani. No fundo é a formação lenta e paciente de grandes áreas de composto orgânico, como o feito em hortas naturalistas, só que aplicado a roças e pomares de 3 a 10 hectares.

A um trabalho de educação para introduzir o sistema de produção agrícola dos índios, o governo poderia agregar alguma ajuda, levando insumos como calcário e potássio. "Uma única e boa carga de calcário que subisse o rio Demene poderia mudar o cenário da agricultura durante 5 a 10 anos", garante Miranda. "E o investimento seria quase desprezível".

A par da intensificação agrícola para dar autonomia aos ribeirinhos, a orientação no sentido de se praticar um extrativismo vegetal e animal mais racional também seria fácil. O simples controle dos povoamentos das espécies de pescado e caça mais procuradas com medidas de proteção ao primeiro sintoma de diminuição dos estoques resolveria o problema. O controle dos produtos extrativos vegetais também é simples no atual sistema de mercado, porque os extrativistas só tiram o que tem preço. Bastaria, portanto, controlar os mercados compradores locais, nas cidades de Barcelos, Novo Airão e Manaus.


Foto: E.E. de Miranda/ECOFORÇA

"Vale destacar, sempre, que nada disso funciona sem a participação da população local", complementa Evaristo Miranda. "Tudo isso - as propostas, as alternativas, os sistemas de produção - precisa ser discutido com a população, precisa ser enriquecido por ela, confrontado com a sua vontade, aprofundado. Não dá para fazer nada na Amazônia sem a participação estreita do cabloco". Mais do que isso, acrescenta Rodrigo Lara Mesquita, "se o zoneamento da Amazônia é uma ferramente indispensável para a racionalização da política de ocupação da área e para a necessária instituição de uma política de ordenamento territorial para todo o país, todas as etapas para que se institua essa metodologia devem ser exaustivamente discutidas pela sociedade. Cada um de nós, como cidadãos, e, mais ainda, qualquer um de nós que tenha algum tipo de responsabilidade pública, devemos fazer um esforço no sentido de saber onde estamos e para onde desejamos ir". A opção à necessária transparência e democratização do processo, ainda de acordo com o diretor da Agência Estado "é continuarmos nas mãos de lobistas e paraquedistas que chegam ao poder público desprovidos de competência e de qualquer outra intenção que não seja a de se locupletarem".