Barcelos, Porto do Extrativismo


Texto de Liana John, jornalista da Agência Estado, AE


Foto: Cristina Mattos/Embrapa Monitoramento por Satélite

Localizada às margens do rio Negro, na boca do rio Demene e isolada por um oceano de matas e águas doces, a cidade de Barcelos é um pequeno espelho da realidade amazônica. Sem acesso às cidades vizinhas senão por barco, com um orçamento anual dependente em 90% do repasse federal e estadual, a cidade sobrevive de uma economia extrativista falida e assiste à lenta deterioração de uma infraestrutura montada de favor.

Barcelos foi fundada em 1755, ainda como sede da Capitania de São José do Rio Negro, por portugueses que implantaram uma economia de patrões de barranco e feudos de exploração extrativista. A cidade viveu seus melhores dias quando os produtos naturais tinham preços razoáveis e a floresta mantinha o mito da inesgotabilidade. Hoje são 6 mil habitantes vivendo uma economia em decadência, embora sem as pressões das fronteiras agrícolas ou do garimpo, comuns em outras localidades amazônicas.

Ponto de partida da Expedição Demene, Barcelos tem um importante papel como porto de chegada dos produtos vegetais extraídos dos sistemas ecológicos ali vizinhos, objeto de estudo dos pesquisadores. Para lá convergem os pescadores, caçadores, madeireiros, piaçabeiros, palmiteiros e sorveiros para vender seus produtos a intermediários que dominam o transporte da zona de produção aos mercados de consumo ou portos de exportação. Mais de dez mil pessoas da região em torno de Barcelos dedicam-se a diversos tipos de extrativismo.

Os intermediários são herdeiros dos antigos patrões e, como eles, trocam produtos florestais, peixes ornamentais, pescado e caça por mantimentos, numa relação de preços sempre desfavorável aos extrativistas. Os mantimentos já chegam em Barcelos de 100 a 200% mais caros, por conta do frete. Sobre tais preços os intermediários ainda acrescentam altas margens para revenda aos extrativistas e assim perpetuam a troca de trabalho por dívidas, muito comum em regiões isoladas do país.

São poucos os ribeirinhos que independem do extrativismo. A maioria deles vive na comunidade de Pai Raimundo, na confluência do Aracá com o Demene e tem a economia baseada na monocultura de mandioca. Vendem a farinha de mandioca, produzida em pequenas casas de farinha, mas não escapam ao controle dos intermediários, já que não tem como transportar seus produtos até os mercados consumidores.

Tanto o extrativismo como a agricultura obedecem à sazonalidade determinada pelas águas. No trecho de Barcelos, a diferença de nível das águas entre a cheia e a vazante fica entre 6 e 8 metros, na vertical. Na horizontal, isso equivale a muitos quilômetros de zonas inundadas em cada margem, com uma variedade incrível de padrões de escoamento das águas, conforme as planícies e ilhas sejam mais ou menos inclinadas.

Durante a época seca, aí se tira sorva, se pescam peixes ornamentais e comestíveis, corta-se piaçaba e madeira e se caçam tartarugas, um dos pratos preferidos na região. No tempo da cheia, transporta-se a madeira e a piaçaba cortada, tira-se palmito e se caçam antas, catetos, queixadas, pacas e veados. Todos sabem que muitas dessas atividades são proibidas, mas não tem outra alternativa de sobrevivência e raramente vêem um fiscal, seja federal ou estadual. Por isso tais atividades prosseguem sem perspectivas de redução ou controle.

Barcelos tem uma estrutura razoável, para uma cidade a mais de 400 quilômetros de Manaus. Mas assiste à deterioraçào dessa infraestrutra sem condições de mantê-la por conta própria. Lá existe uma pista de pouso asfaltada, um hospital e duas escolas, uma da prefeitura e outra da igreja católica, ordem dos salesianos. A pista já foi um aeroporto com avião de linha. Construída pelo Exército, dentro do programa Calha Norte, a pista conta com tanques de combustível para abastecimento dos aviões da Força Aérea Brasileira, FAB. Só que os aviões escassearam: nem os vôos comerciais, nem os da FAB seguem mais para a cidade.

Graças à desativação do Projeto Calha Norte, também o hospital da cidade está condenado. Em janeiro de 1992, os dois únicos médicos, mais um farmacêutico e um dentista, todos do exército, deixaram a cidade. O tratamento para quem fica doente, por enquanto, são os postos e hospitais de Manaus, a três dias de viagem em barco de linha.


Foto: Liana John/AE

Restam as escolas, não se sabe por quanto tempo. A ordem dos salesianos diminuiu muito sua atuaçdo na área, sem recursos para manter os caros programas assistenciais e educacionais. Os caboclos do interior e da periferia - que antes enviavam seus filhos à missão salesiana e pagavam o material escolar e os estudos com produtos agrícolas e trabalho nas roças da escola - alegam não ter dinheiro para comprar uniformes e cadernos. Já existem muitas crianças analfabetas (Foto), e algumas delas são filhas de pais alfabetizados, o que atesta regressão da educação local.


Foto: Luiz Prado/AE

Por todos esses sintomas, Barcelos é o retrato de uma cidade que veio do passado com histórias de colonizadores bem sucedidos, cujo presente caminha para trás e o futuro é uma incógnita. Só um plano de desenvolvimento bem feito, de longo prazo, com perspectivas econômica e culturalmente adequadas à realidade amazônica, pode reverter-lhe o destino.